domingo, 29 de março de 2009

MUDARAM AS ESTAÇÕES E NADA MUDOU


"Há grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos. Mas o verdadeiro grande homem é aquele que faz com que todos se sintam grandes." (Gilbert Keith Chesterton)

No dia 27 de março o maior cantor e poeta da história do rock nacional faria 49 anos. O tempo passa mas ainda me emociono com a poesia e as interpretações dele em várias canções que me marcaram. Foi uma das pessoas mais influentes na minha história e fundamental na minha trajetória musical. Minha lembrança de como tudo começou lá pelos meados da década de 80 ainda é muito forte. Lembro claramente que quando a Legião Urbana lançou seu primeiro disco em 1985, a febre do momento era o Rock in Rio. O disco passou meio batido por causa desse festival mas um carinha da minha turma comprou a bolacha e antes que ”Será” começasse a tocar nas rádios eu, que já tinha caído de boca no pop rock carioca da Blitz, Lulu Santos, Kid Abelha, Paralamas do Sucesso e Barão Vermelho com Cazuza, fiquei conhecendo todo o disco. Na verdade eu já tinha ouvido algum material dos caras antes mesmo do lançamento porque na época eu só ouvia a rádio Fluminense FM. Essa rádio alternativa, que surgiu junto com o boom de bandas de rock, abriu espaço pra todos os grupos amadores que pipocavam e passou a apresentar ao publico suas gravações demos. Foi nessa rádio que ouvi pela primeira vez Ira!, Capital Inicial, Plebe Rude, Violeta de Outono, entre outros. E foi assim com a Legião. Ao examinar a capa daquele disco, estranhei o fato de não conter nenhuma foto do grupo. E no encarte preto e branco, somente com desenhos egípcios, estavam as letras que me chamaram a atenção pela temática e riqueza. Eu nunca tinha lido nada parecido. Ouvindo o disco, eu e meus amigos fomos incorporando aquelas canções que, mesmo sem um apelo comercial, grudavam nas nossas cabeças. Me surpreendi muito com a última faixa: com praticamente todas as canções cruas e abusando de guitarras, o disco termina com uma música cheia de teclados e com bateria eletrônica, que chamava-se “Por Enquanto” (mais tarde popularizada por uma tal de Cássia Eller!). Depois de ouvir isso, perdi um pouco do preconceito que eu tinha com a tecladeira no rock. A possibilidade de assistir ao grupo num espaço pequeno onde se pudesse ficar colado no palco acabou quando o segundo disco saiu. Pirei com aquelas canções e letras que me instigavam a ler. Fui atrás e descobri que “Baader-Meinhof” do primeiro disco era um grupo terrorista alemão. Que “Andrea Dória” na verdade foi um navio que afundou e não a musa inspiradora daqueles versos. Aprendi que a gente podia falar de amor sem ser piegas e sem cair em banalidades com “Eduardo e Mônica” que eu cantava e tocava no violão com emoção e a expectativa de quem um dia poderia viver aquilo. Naquele período as letras me ajudaram muito a segurar a barra pesada de ter uma família desestruturada. Quando eu tava muito down e ouvia as letras e os discursos do Renato em shows gravados em fitas K7, as coisas na minha cabeça mudavam e eu me fortalecia. Frases como "eu vou conseguir", "a amizade é o mais importante"ou "mesmo que tudo pareça perdido tenho certeza que existe alguém que vai querer ti ajudar" bradadas em alto e bom tom entre uma música e outra, eram a minha droga. Elas me confortavam e me davam esperança. E assim minha idolatria por essa espécie de "irmão mais velho" foi ficando maior. Eu começava a tocar violão e montei uma banda com minha patota. Batizada Dinastia, com ela executávamos covers de Ira!, Paralamas, Plebe e naturalmente Legião. Assim, antes do terceiro disco sair, já era familiar pra todos nós o hino Que País É Este? que tiramos de uma daquelas fitas piratas e passamos a tocar. Dessas fitas tirei também a quilométrica “Faroeste Caboclo”. Ninguém entendeu nada na minha rua quando apareci com aqueles 159 versos na ponta da língua e todos os acordes da música na ponta dos dedos antes mesmo dela chegar ao grande público. Como grande fã que era, eu procurava e devorava qualquer texto que falasse da banda ou do seu líder. Infelizmente eram raras as aparições na televisão. A MTV ainda não tava no ar. Quando faziam algum programa global como o famigerado Globo de Ouro que colocou “Faroeste Caboclo” em primeiro lugar e deixou o grupo tocar ao vivo (era sempre playback) desde que omitisse o filha da puta da letra, ou participavam de especiais como o do Paralamas ou do "romântico" Chico & Caetano, era uma festa pra gente e matéria especial em revistas de música. No Fantástico só apareceram naquele fatídico episódio em que num show em Brasília, um xarope subiu no palco, pulou nas costas do Renato e tentou enforcá-lo. A carência de imagens era suprida com as revistas. Eu colecionava a revista Bizz, única no mercado que acompanhava bem de perto todo o movimento do rock tupiniquim. Mas minha carência seria bem suprida. Em meados de 89, recebi um convite de um amigo e resolvi me mudar pra São Paulo por causa dos conflitos em casa, da falta de oportunidade profissional e da violência da "cidade maravilhosa". Marquei viagem pro dia 19 de junho e no dia anterior fui resolver alguns assuntos e me despedir de uma guria no centro do Rio. Nesse dia, assim que cheguei ao centro, comprei uma edição da revista Bizz que publicava a terceira parte da biografia da Legião. Não abri porque queria ler com calma dentro do ônibus na volta pra casa. Resolvidas as últimas pendengas, sigo eu pela avenida Rio Branco (a avenida paulista do Rio) em direção ao trabalho da tal moça quando, próximo a Cinelândia, avisto um sujeito muito branco vindo em minha direção que chama minha atenção pela semelhança com o Renato. Ao se aproximar olho pro sujeito novamente e...meu Deus! Era o próprio!! Meio assustado e sem saber o que fazer minha única reação a princípio foi, num reflexo, balançar a cabeça pra ele. Como vinha caminhando distraído, ele se surpreendeu com o meu cumprimento e somente levantou a sombrancelha timidamente. Parei e olhei pra trás. Aquilo era um sonho. O meu maior ídolo, uma celebridade, ao vivo e a cores ali na minha frente seguia tranquilo sem ser reconhecido por ninguém! Eu que detestava tietagem fiquei me perguntando se não deveria abordá-lo, afinal de contas aquele ali que estava indo embora era o meu maior guru. Ele atravessou uma rua, parou em frente ao vidro fumê de uma agência do Banco do Brasil e começou a ajeitar o seu cabelo. Era um corte muito feio com uns fiapos de topete caindo na testa e aparado com máquina dois nas laterais. Usava uma calça de couro preta e carregava debaixo do braço direito três livros grossos tipo enciclopédia. Imaginei que ele tivesse saindo da biblioteca nacional que fica bem próxima dali. Com o coração disparado resolvi falar com ele. Antes de terminar sua ajeitada no pêlo, me aproximei. "Oi Renato!" disse com minha mão estendida tentando esconder meu nervosismo. "Sou super fã da banda!". Ele, que certamente lembrou que eu acabara de passar por ele, ficou meio sem jeito, trocou os livros de braço, apertou a minha mão e soltou um "oi" tímido. Estava sério e cabreiro. Me esforcei pra passar naturalidade, fingi que estava indo na mesma direção que ele e puxei conversa. "Poxa! O disco novo tá demorando pra caramba pra sair, hein? O que é que houve?" disse me referindo ao que seria o "Quatro Estações". Ele respondeu: "Sabe o que é? É que eu tô com muitas dificuldades com as letras e também tem o lance do Billy ter saído!" (Billy ou Renato Rocha, foi o baixista dos três primeiros discos que foi dispensado da banda porque pirou com as drogas no auge da fama). Seguiu ele: "Na verdade voltamos as nossas origens agora. No início da banda éramos só nós três: eu, o Dado e o Bonfá..." tentava ele me explicar achando que eu era um leigo. Talvez me achasse um fã de FM pela minha aparência, pelas roupas que eu trajava: calça jeans nova, camisa gola polo e sapatinho dockside somados a uma carinha de baby johnson com cabelinho curto e penteado (juro que só vesti aquele troço e me produzi porque fui me encontrar com aquela menina. Que merda!). Aquelas explicações me incomodaram um pouco e imediatamente interrompi o cara: "Eu sei! Eu sei! Conheço toda história da banda!". Enquanto seguia ao seu lado trocando a maior idéia, eu olhava pras pessoas e ficava admirado por ninguém reconhecê-lo. Lembrei dos meus amigos: "Caraca! Se eles me vissem agora!". Tenso o tempo todo, consegui representar pra ele uma calma que não existia. Assim ele foi se soltando e ficando mais simpático."Vocês ensaiam na Ilha do Governador, né? Joguei essa sabendo que a banda ensaiava no mesmo bairro que Renato morava. E como ele deu a mão eu quis o resto. "Então, como é que eu faço pra assistir um ensaio de vocês?" Ele veio com essa: "Ah não! É complicado. Eu tenho vergonha!". Achei graça "Ah! Que é que há!?". Lembrei de um amigo do baterista da minha banda que era roadie da Legião e tinha prometido nos levar pra assistí-los. Resolvi simplicar e apelei: "Pô, pensei que era tranquilo porque um amigo meu roadie de vocês ficou de descolar um ensaio pra gente ver..." Aí ele me quebrou: "Qual o nome dele?" Como eu não sabia o nome da figura tive que explicar que na verdade o tal roadie era amigo do meu batera, blá, blá, blá. Acho que ele não acreditou e achou que eu estava jogando verde pra colher maduro. Depois de alguns quarteirões grudado nele, lembrei do encontro com a garota. Olhei no relógio e vi que me atrasaria muito se continuasse ali pentelhando o cara. Ele entrou numa banca de jornal e foi ali que, muito a contragosto, resolvi me despedir. "Cara, foi um grande prazer ti conhecer pessoalmente. Sucesso!" Foram minhas últimas palavras ao apertar mais uma vez aquela mão que um dia escreveria “Metal Contra As Nuvens”, “Só Por Hoje” e “Antes das Seis”. Sai dali extasiado mas logo em seguida brochei. Fiquei chateado por achar que poderia ter conseguido mais coisas. Será que eu teria balançado o cara se ao invés de dizer de forma educada e simpática "sou fã da banda" eu dissesse eufórico e emocionado "sou seu fã desde sempre e você representa pra mim o que o Bob Dylan representa pra você" (ele era fanático por Bob Dylan). Será que seu eu estivesse todo largado, usando meu jeans surrado com aquele par de tênis adidas branco, velho e sujo mais a minha camiseta preta do Joy Division, não teria cativado o ex-punk? Mil coisas passaram pela minha cabeça nos dias que sucederam aquele encontro e até hoje me pergunto se tudo seria diferente se eu tivesse falado as coisas certas. É tão difícil acertar nessas circunstâncias. E ao descobrir que aquela revista Bizz que eu tinha acabado de comprar continha uma foto de página inteira dele com uma camisa branca, me arrependi de não ter pedido seu autográfo. O espaço na camisa era perfeito. Fazer o quê? Paciência. Alguns meses depois saiu o quarto disco (o primeiro em CD) que pela serenidade, clima religioso e letras sobre solidão, amizade e família me tocaram fundo. Logo em seguida, antes do final desse ano, Renato sai do armário numa entrevista à mesma revista Bizz. Lembro como se fosse ontem: eu voltava pra casa e dentro do ônibus fiquei surpreso e perplexo quando li o trecho onde ele assumia sua condição de homossexual. Reli várias vezes pra ter certeza de que aquilo era mesmo uma revelação. Minha admiração e meu respeito por ele não mudaram em nada. Fiz uma retrospectiva da sua obra e detectei em “Soldados” (tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto) e em “Daniel Na cova Dos Leões” (teu corpo é meu espelho e em ti navego) citações que remetem ao universo gay. Ao contrário do espalhafatoso Cazuza, outro monstro sagrado pra mim, Renato foi discreto e escondeu de todos sua opção sexual até quando quis. Tive a oportunidade e o privilégio de ver o lançamento do Quatro Estações nos shows que aconteceram em São Paulo, no Parque Antártica em 90. Fui nos dois dias mas fiquei com o gostinho de quero mais na boca. No primeiro dia fiquei nas arquibancadas e não deu pra curtir tanto o show. Mas me emocionei com a queima de fogos no final ao som de “Rapsody in Blue” de George Gershwin. Já no segundo dia cheguei mais cedo e fui pra pista. Posicionado a alguns metros do palco pude constatar bem de perto a loucura que era assistir a Legião Urbana ao vivo. A energia da banda, a performance do Renato, a emoção do público. Até situações engraçadas como a cena do Renato dando esporro no Fred Nascimento (músico de apoio na época e que hoje acompanha o Capital Inicial) que insistia em acompanhá-lo ao violão numa música improvisada pelo cantor à capella ficaram na minha memória. Renato falava: "Eu não tenho vergonha do que eu faço no banheiro nem da minha vida sexual!" ou "Não consigo cantar que o Brasil é o país do futuro com tudo que tá acontecendo nesse país!" e inflamava a galera. Tudo era perfeito. Tudo era bonito. Tudo era poesia! Este foi com certeza o show da minha vida. Eu já podia morrer! Alguns anos depois, quando saiu o quinto trabalho do grupo, fui morar sozinho. Me apaixonei por uma ninfeta que trabalhava comigo mas ela não me quis. O disco, intitulado V embalou minha solidão e a minha fossa naqueles dias e “Vento no Litoral” era o tema daquela paixão não correspondida. Assim Renato ia montando a trilha sonora da minha vida.
Durante todos aqueles anos Renato foi também uma grande influência como cantor. Eu, que gostava de cantar desde meus 4 anos, passei a imitá-lo. Colocava um disco pra rolar e cantava junto todas as músicas, ora interpretando, ora berrando. Foi uma escola e tanto. Quando saiu o sexto disco, O Descobrimento Do Brasil, eu já tinha desencanado um pouco de rock e começava a estudar música. Mas comprei o disco e achei maravilhoso aquele pop de bom gosto em letras profundamente pessoais. A década de 90 foi passando e fui me afastando cada vez mais do rock. Passei a ouvir e tocar gêneros como blues, choro, mpb, samba tradicional e jazz entre outros. Música bem diferente, outra onda. E talvez esse distanciamento do grupo tenha amortecido um pouco o baque pela morte do Renato. Quando uma amiga me ligou ao meio-dia daquele 11 de outubro de 1996 me dando a notícia, inicialmente fiquei muito surpreso porque nem sabia que ele tava doente, já que não acompanhava mais de perto a carreira da banda. Passei o resto do dia agitado, gravando tudo que passava na televisão. No noticiário seu médico dizia que ele descobrira ser portador do vírus em 89. Lembrei dele me dizendo "tô tendo problemas com as letras". Será? Depois que caiu a ficha de que Renato não estava mais entre nós, bateu a tristeza. Acho que se acontecesse hoje eu ficaria arrasado mas naquele momento eu tava estranho e não chorei. Não sei explicar. Talvez a música instrumental que eu praticava naqueles dias tivesse me deixado frio, racional demais. Felizmente em meados de 2001, enxerguei minha realidade e vi que aquela masturbação sonora chamada de música instrumental não me levaria a lugar nenhum. Quando comecei a ouvir o disco ao vivo Como É Que Se Diz Eu Te Amo, me deu uma puta vontade de fazer aquele tipo de som, naquele formato, pra cativar as pessoas e passar coisas legais. Lembrei de uma frase do Renato que dizia que uma canção pop é uma vida inteira em três minutos. Resolvi largar todos os projetos com aquele som “cabeça" e investir numa idéia antiga: fazer música com o coração. Era isso. Como o alquimista do Paulo Coelho, descobri que meu caminho na música era simples e sempre esteve do meu lado, nas minhas raízes. Me senti leve. Peguei o meu vinil do Quatro Estações que depois de alguns anos guardado e esquecido, voltou a rodar na minha vitrola. Que sensação boa! Há tempos não me sentia tão bem apenas por ouvir música. Quando a faixa que encerra o disco “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar” começou a tocar, não consegui conter as lágrimas. Foi um choro inexplicável, um choro bom, um choro de felicidade. Como num reencontro com um velho amigo. Voltei a ouvir rock e a escrever letras. E talvez tentando me redimir do meu breve abandono ao poeta e também tomado de uma nostalgia num momento em que me sinto meio depressivo e muito emotivo, tentei resumir nesse texto o que representou pra mim esse ser humano chamado Renato Russo. Um pouco do que sou e penso devo à sua existência, às suas letras universais, à sua música, enfim, à sua obra. Tento seguir a sua cartilha sempre que posso e consigo. Então encerro esse texto compartilhando com todos a pequena frase que precedia seus autográfos: "Força Sempre".


Postado ao som de "Porquá Mecê" (Os Mulheres Negras)

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